sonequinha
Nossa mente é um ônibus se balançando todo e as memórias são jacas maduras no colo de senhorzinhos sonolentos.
"O pior é que eu não consigo dormir de tarde."
"Como assim? Deita e o sono não vem?"
Lá vem o ônibus virando a curva, mas não to dando conta de ler a linha. Maldito astigmatismo.
"Não é bem isso, sabe? Tipo, o sono tá lá, mas eu simplesmente não consigo."
Que diacho de guarda-chuva que só me atrapalha na hora de passar a catraca? A ponta parece que encontra todos os cantinhos possíveis para se enfiar. E quem é que compra guarda-chuva com cabo curvado hoje em dia?
"Mas de noite não é assim também?"
"É que, assim, de noite o sono nunca tá lá. Sempre me pega de surpresa."
"Ih, me lembro disso de te falar pra não ficar pensando. Não dá certo."
"Não mesmo."
"Ow, o zíper de cima da sua mochila tá aberto, vê se não caiu nada."
"Ih cara, se tinha alguma coisa, já era. Mas acho que não."
"Mas, voltando aqui, como que você pode dizer que alguma coisa tá lá ou não? Nossos olhos fechados, nossa cabeça no travesseiro? É vazio, pô!"
"Já ouviu falar de palácio mental?"
"Ih, lá vem... Pera, antes de começar, abre um pouco a janela do banco da frente. Pode molhar um pouco, mas tá muito abafado."
Se algumas gotas baterem nas lentes dos meus óculos e manchar quando secar, é capaz que eu limpe só daqui uns três dias, quando já tiver sujo de óleo de cozinha também.
"Eu vi num documentário uma vez, sobre campeonatos de memorização. Inclusive, parece que a Mongólia é uma potência no esporte. Fica aí a informação."
"Técnica de memorização? Pra dormir?"
"Não é como seu tentasse memorizar coisas quando eu deito. Mas quando eu fecho os olhos, eu sinto como se estivesse andando em cômodos, por onde eu vou encontrando as memórias. Igual esse ônibus, só que no lugar daquele senhorzinho carregando uma jaca seria, sei lá, a caixa do supermercado ou o cara da distribuidora. Aí eu saio por uma porta e entro em outro espaço."
"Acho que to entendendo... É na próxima?"
"Deixa eu ver aqui, rapidão... Não. É sem ser na próxima, nem na outra. Na outra."
"Na do hospital?"
"Uma antes."
"Mas, e o sono? Você disse que vê as coisas que aconteceram durante o dia nesses cômodos em forma de ônibus. O sono se parece com o que?"
"Não é que são ônibus, eu só fiz uma comparação."
"Você não me respondeu."
"Já te falo, vamo descer primeiro. Já aperta o botão aí."
"Tu não fechou o zíper. Mas, foda-se, ta vazio mesmo, né?"
O guarda-chuva tava começando a rasgar na costura que segura uma das pontas. Será se foi no hora da catraca? Mais um que logo vou ter que trocar. Com esse eu não estou achando tão ruim.
"O sono não é nada nem ninguém que eu encontrei durante o dia. Não é tipo o Sandman no fundo do ônibus. É diferente."
"Diferente, como?"-- "Ei... vamos passar ali pelo lado, por onde você tá indo tá cheio de manga podre no chão."
"É meio como uma sensação. Aos poucos o chão vai se movendo de um lado pro outro. Vai num ritmo gostoso, até que eu caio e perco a consciência. Quando eu durmo de noite eu não consigo perceber o embalo chegando, quando vejo, já foi. De tarde, parece que sou eu que estou provocando o movimento e ele nunca consegue me pegar de surpresa."
"Tipo aquela sensação de que tá caindo quando tá dormindo?"
"Mais ou menos."
"Por que eu to com a impressão de que vou pegar essa mania sua e ficar esperando sentir o chão se mover quando for deitar?"
"Eita, foi mal. Mas tu que me pediu pra explicar."
"De boa ahahaha. Chegamos?"
"De acordo com GPS é aqui, agora a gente precisa encontrar a portaria. Mas vamo só passar ali na distribuidora primeiro. Meu isqueiro tá morrendo"
"Massa."
##
Esta é uma segunda parte de uma série de publicações em forma de diálogos. Pra mim, tem sido uma forma ótima de materializar pensamentos e dar vazão à escrita fora de uma lógica expositiva, que acabava sempre caindo num academicismo explicativo ou qualquer coisa do tipo. Por enquanto, seguirei por aqui. Aguardem mais.
##
Ando revendo Samurai X (Rurouni Kenshin), numa nova animação, que saiu ano passado. Tinha me esquecido do tanto que o Kenshin Himura é um cara incrível e serviu como modelo para o Raoni adolescente lendo os mangás comprados todos fora de ordem nas banquinhas de revista pelo interior do Tocantins e Goiás. Também lembrei de como a obra toca em temas como história, política, revolução, pacifismo, justiça, reconciliação.
##
Braga Netto é só o primeiro!! #semanistia pra milico golpista!
##

